4.3. terceiro sinal: cura da paralizada

terça-feira
Iara fora sempre gentil.
Menina moça quase feliz.
Alimentava-se de pitangas e gabirobas,
de araras e jenipapo, vestia-se faceira,
aquenta-se com guerreiros e caçadores.
Era de amores, bebia cauim.
Via-em-sonhos, mundo-que-viria:
comida abundante, sem labor em plantação.
Caça e bebida generosas, inebriantes.
Velhas e velhos em danças amorosas .
Terra-sem-males. Promissão.
Mas chegou de além-mar o estrangeiro,
ambicioso, diferente, não cavalheiro,
rude nos gestos e macio nas falas,
cruz e espadas em fé e sangue.
Deflorou-a sem ternura nem dó sem piedade.
Ela, impotente, submeteu-se ao destino.
Gerou-lhe filhos e filhas, deu-lhes cuidados.
Amamentou em seus seios, negros escravos,
Em suas pernas, consolou os seus ais em desterro.
Pariu prole híbrida, mestiços e senhores.
Aprendeu árabe, polaco, judeu.
Entregou-se a inglês, japonês, americano.
Bem traçada, mal falada, não amada.
Chegou exaurida a idade plena.
Mulher adulta, cordial e infeliz.
Não recordo bem, foram anos de flagelo
Talvez 64, 68 ou 70.
Mas com certeza até os noventa.
Regime inclemente.
Galhos secos, torcidos, quebrados.
Poetas tolhidos, lábios sem canções.
Insepultos nos campos de batalhas.
Botas manchadas, vermelhas.
Tentaram enganar o desengano:
Vênus enfeitada de prata foi convocada,
diários escritos oficiais em folhas,
anjo trofeu dourado com nome francês.
Em vez de prodígios, somente ilusão.
Emanuel e sua turma visitaram Iara.
Insonsa, temperou suculento jantar,
e ao abrir a janela, perfumou-se, dama da noite.
Choveu a chuva. Aconteceu os botões.
Senhora das águas, outra vez graciosa,
quis em si conjugar o dar, palavra sagrada.
Amorosa, lavou e lustrou as botas,
Derreteu, faminta, o ídolo de ouro,
trocou o canal, sonhando, virou a página.
Um anjo de quatro dedos dedilhava a viola.
Emputalhados, rangiam ferozes caninos.
Emanuel riu, era bom. Terceiro dia.